Marcas: o DNA e o RNA de grandes nomes do mercado
Muito se fala na moda sobre o DNA das grandes casas. O termo, que já se tornou clichê, dá conta dos bens mais preciosos que elas carregam: suas marcas registradas, peças ícones, estilo e história – até bem pouco tempo atrás, características que eram defendidas ferrenhamente e ditavam o sucesso (ou não) de diretores criativos e seus cargos. Mas repare que a onda está mudando e o que é mais legal agora é mexer no RNA. Novamente exercitando a biologia: enquanto o DNA é o núcleo duro de nossas informações genéticas, garantindo a passagem entre gerações, o RNA é a molécula que transcreve e traduz essas características, produzindo novas proteínas. Ou, na moda, parcerias que enchem os olhos de quem está mais focado na roupa como expressão de arte.
A ideia de collab não é nova na indústria. As últimas décadas viram passar o frenesi das fast fashions, que convidavam estilistas de renome para assinar coleções-cápsula, e maisons elencando marcas de streetwear para acessórios pontuais. Porém, se essas se baseiam na sobreposição de características de duas empresas, a novidade foca no lado criativo. Saem as colaborações comerciais e entra a fase do “criador convidado”.
Essa movimentação rende químicas que ninguém teria calculado antes. Uma das primeiras surpresas dessa nova era veio quando Dries Van Noten desenhou seu verão 2020 a quatro mãos, com Christian Lacroix, somando de surpresa as criações de caminhos quase opostos. O exemplo mais recente aconteceu na temporada de desfiles de alta-costura para o inverno 2020/2021, em julho. Jean Paul Gaultier, aposentado das passarelas desde janeiro de 2020, abraçou a ideia para manter vivo seu nome — sem que fosse necessário contratar uma pessoa para ocupar seu lugar em longo prazo e abrindo a porta para uma série de convidados (temporários) de honra.
A inaugural foi Chitose Abe, estilista da Sacai. Egressa da escola nipônica da Comme des Garçons, Chitose fez carreira com uma sisudez técnica que bate de frente com o deboche bem-humorado de Gaultier. Esse mix’n’match mostrou de que maneira a japonesa poderia trabalhar sobre os clássicos históricos do francês – como as listras do marinière, os corseletes e as alfaiatarias risca-de-giz – ao mesmo tempo que mantém o próprio trabalho característico de modelagem e corte. Um híbrido que faz deferência ao criador original e, em paralelo, traz seus ícones para uma nova audiência de olhar fresco.
Os futurólogos já apontavam que vivíamos a época do compartilhamento. Em paralelo, há a necessidade das marcas de produzirem mais conteúdo do que produto. A disputa pela atenção no ambiente de multi-informação é ferrenha; logo, ter uma história interessante para contar – mesmo que seja um conto de apenas uma temporada – mantém a relevância
Essa ideia de remix reflete muito o que o mercado pede. Os futurólogos já apontavam que vivíamos a época do compartilhamento. Em paralelo, há a necessidade das marcas de produzirem mais conteúdo do que produto. A disputa pela atenção no ambiente de multi-informação é ferrenha; logo, ter uma história interessante para contar – mesmo que seja um conto de apenas uma temporada – mantém a relevância. E ajuda a dar certa humanidade às empresas, necessária para não escapar à mente do consumidor. Ser pop, em 2021, é trabalhar em comunidade e ter um rosto. A figura do diretor criativo inalcançável está out.
Esses são alguns dos motivos pelos quais, por exemplo, Miuccia Prada passou a dividir seu posto matronal à frente da Prada com Raf Simons – um caso de guest designer a longo prazo. Ou, em um exemplo mais extremo de troca de conteúdos, quando Alessandro Michele apresentou a coleção Gucci Aria, hackeando códigos e produtos da Balenciaga de Demna Gvasalia para dentro de suas criações.
Essa gincana fashionista entre nomes concorrentes, que seria impensável para os tradicionalistas, tende a se tornar cada vez mais frequente – e improvável. Com o foco aberto nas personalidades dos criadores, os encontros dão espaço para formatos diversos. Pode ser um clash interpretativo, como o de Gaultier e Chitose, ou uma sintonia transgeracional feito a da Prada. Em comum, a troca de expertises, a sobreposição de estéticas em novas perspectivas e o feeling de que a moda ainda pode se divertir com ela mesma. Em tempos tão bicudos, a sorte é nossa